Portadores do HIV enfrentam efeitos do tratamento
Trinta anos depois do início da epidemia mundial de Aids, uma coisa a ciência garante: é totalmente possível levar uma vida normal graças aos remédios, cada vez mais modernos.
Mas como mostra o doutor Drauzio Varella, o fato grave é que um em cada três portadores do HIV não sabe que tem o vírus e dez mil brasileiros ainda morrem todos os anos, vítimas da AIDS.
“Comecei a tomar medicação há seis ou sete meses, e eu era soropositivo há dez anos”, conta Paulo Rogério Alves, voluntário de ONG. “Tenho tido reações horríveis. Dor imensa no corpo, febre, não consigo comer nada que sinto tontura, queimação no estômago.”
Receber o diagnóstico de HIV positivo não é mais uma sentença de morte. Existe tratamento. Mas isso não quer dizer que os problemas dos portadores do vírus desapareceram. É preciso tomar medicação todos os dias, religiosamente, para sempre, e ainda enfrentar os efeitos colaterais. Mas vale a pena. Seguindo o tratamento à risca, a vida melhora muito.
“Tomo nove comprimidos de manhã e nove à noite. Então tomo às 8h e às 21h, todos os dias. E não posso falhar com o medicamento. Às vezes tomo uma hora antes ou depois, mas não deixo de tomar”, explica Sérgio Rossi
“O importante é que tem que ter um horário. Não existe um medicamento que você tome depois do almoço, depois da chuva ou depois da novela. Faz uns dez anos que tomo medicamento e não sinto praticamente nada. Não tenho uma dor na unha, não sinto dor de cabeça”, diz Silmara Retti, do projeto Blablablá Positivo.
Sérgio Rossi pegou HIV porque usava droga injetável. Quando se casou com Silmara nem desconfiava. Não tinha nenhum sintoma. Os dois não usavam camisinha e ela também se infectou.
“Eu demorei um pouco para contar para eles porque no começo eu estava com receio da reação deles”, lembra Silmara.
“O começo foi barra. A gente pensou: ‘meu pai e minha mãe têm HIV. Vão morrer’”, diz o estudante Raphael Retti.
“Ela veio para mim e fechou a porta. Fiquei assustado. Ela falou que tinha HIV. Comecei a chorar”, descreve o estudante João Rossi.
“Depois ela explicou: ‘olha, mãe, vou tomar remédio direitinho’. Aí fiquei mais aliviada”, acrescenta a aposentada Maria Maffei.
Até 1995, existiam apenas três ou quatro remédios que pouco ajudavam no tratamento da Aids. Em 1996, surgiram os inibidores de proteases, muito mais eficazes no combate ao vírus. Esses novos medicamentos, associados aos que já existiam, formou o que o povo chamou de coquetel. Foi uma revolução. Muitos pacientes que estavam à beira da morte renasceram. Estão vivos até hoje e levam uma vida normal.
“Foi justamente na época em que eu estava amamentava o João que o Serginho caiu no banheiro, ele desmaiou o foi levado para a Santa Casa. Aí eu fui em uma visita. A gente não sabia o que realmente era. Pensamos que era um infarto ou derrame, porque ele ficou todo travado. Aí a médica me chamou no corredor e perguntou se eu não sabia o que o Serginho tinha. Eu falei que achava que era um derrame. Ela disse: ‘não, ele tem Aids’. Isso foi falando no corredor. Eu levei um baita susto. Eu disse: ‘como assm, Aids?’”, descreve Silmara. De fato, o que ele teve não foi derrame cerebral. Foi toxoplasmose, uma doença transmitida por gatos e outros animais. Em pessoas saudáveis, a toxoplasmose não costuma causar complicações. Mas em quem tem Aids, o parasita se espalha por todos os órgãos, afetando até o cérebro.
“Eu faço pintura já há um ano e meio. Quando eu vi a foto do vírus HIV, achei ele interessante, bonito. Resolvi pintá-lo. Falei: ‘vou pintar e colocar na sala, para todo dia que eu olhar para ele eu ver o vírus do HIV’”, conta Sérgio Rossi, marido de Silmara.
Na Praia Grande, no litoral paulista, Paulo Rogério Alves prepara o almoço na entidade em que trabalha.
“Depois que comecei a tomar o coquetel, não tive muita vontade de comer. Ontem mesmo eu fui comer quase às 21h, sem tomar café ou lanche”, diz Paulo. O professor Samir Amim, de Belo Horizonte, que conhecemos no primeiro episódio, iniciou o tratamento agora, cinco anos depois do diagnóstico.
“Na primeira semana, os efeitos colaterais foram difíceis, principalmente nas madrugadas. Tive algumas alucinações, muita tonteira, enjoo muito forte, acordava bambo”, lembra Samir.
“Uma vez eu caí e bati a cabeça no criado-mudo. Eu levantei e não consegui me escorar na parede”, conta Paulo.
“No começo, o meu rosto ficou todo pipocado. Eu tive febre, eu tive sintomas como se eu estivesse em uma fase ruim da doença”, diz Silmara.
“Houve pesadelos. Teve um momento que eu não conseguia saber se eu estava deitado na minha cama ou em pé. Eu não sabia”, continua Samir.
“Fiquei dez dias sem ir ao banheiro. Nossa, eu fiquei horrível. Depois de 20 dias, eu voltei ao normal como se nada tivesse acontecido”, conta Sérgio.
“Perco muito o apetite. Acho que isso está piorando. Para não fazer confusão com os comprimidos, tenho uma caixinha. Separo os comprimidos e os dias da semana”, explica Paulo.
Receber o diagnóstico de HIV positivo não quer dizer que você vai tomar o coquetel imediatamente. O médico vai acompanhar a progressão da infecção através de exames de sangue para definir o melhor momento para iniciar a medicação. O tratamento tem começo, mas não tem fim. O tratamento está cada vez melhor, os doentes tomam cada vez menos remédio, a doença fica controlada por muitos anos, mas não conseguimos curá-la.
“A gente ainda não tem uma resposta definitiva do porquê o vírus consegue escapar de medicamentos tão poderosos. Aparentemente, esse vírus, diferente de a maioria dos outros, tem uma capacidade de se esconder dentro das células do organismo. Ele fica incrustado no material genético das células, no que chamamos de cromossomos”, explica o infectologista Esper Kallás.
Na corrente sanguínea, o HIV encontra e penetra no glóbulo branco, célula envolvida na defesa imunológica do organismo. O vírus seus genes com os do glóbulo branco. Nesse processo, o glóbulo sem querer fabrica milhões de cópias de novos vírus. Ao sair do interior da célula, esses novos vírus provocam a sua morte, e vão infectar outros glóbulos para repetir o mesmo ciclo.
“A gente ainda não tem mecanismos e ferramentas para tirar o vírus desses locais”, completa o infectologista Esper Kallás.
Os remédios não conseguem eliminar o HIV do organismo, mas controlam a multiplicação do vírus e impedem que ele destrua as defesas imunológicas. A Organização Mundial da Saúde diz que nos próximos cinco anos as mortes por Aids podem diminuir 20% se o tratamento começar mais cedo.
Paulo continua firme na luta contra o vírus. Faz exames a cada três meses e todo mês volta ao posto de saúda da Praia Grande para buscar os remédios.
“Não seria fácil. Sem eles eu não conseguiria concluir nenhum sonho”, avalia Paulo.
Assim como ele, 250 mil portadores do HIV recebem gratuitamente os medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A medicação contra o HIV não é vendida em farmácias.
“Cada paciente de HIV que toma o medicamento tem um custo de mais ou menos R$ 3 mil por mês, se ele precisasse pagar. É inviável”, calcula Silmara.
“O impacto disso no orçamento do Ministério é razoável”, diz o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão. “Metade do coquetel é de genéricos produzidos no Brasil por laboratórios públicos e empresas privadas parceiras. A outra metade é de medicamentos protegidos por patentes.”
Algumas pessoas pensam que, se pegar Aids, é só se tratar. Levar uma vida normal, tomando uns comprimidos. O que há de errado com esse raciocínio?
“Com tudo o que nós temos hoje, só no Brasil morrem mais de dez mil pessoas de Aids por ano”, argumenta o infectologista Esper Kallás.
MARIA JUSSARA SILVESTRE
MONITORA APE